"o fluxo cativante das palavras-fotos"
— por Fernando Sousa Andrade, poeta e jornalista brasileiro

[resenha \ recensão crítica publicada na revista Mallarmargens, 25 fev.2019]



"E se nossa afetividade fosse uma forma antropológica de ver a natureza? Não separaríamos o real de uma indumentária ou roupa cultural pela qual cada lugar está como ponto de observação. Assim, nossas emoções, com a fisicalidade da natureza, estariam fixas aos pontos cardeais, latitudes e longitudes, que trariam as estações invertidas, a relação térmica trocada, inversa, quente-frio. E se a poesia for uma forma de colocar o real em métrica, em versos, com ou sem musicalidade interna? O antropomorfismo seria esta bagunça? quase dionisíaca de embaralhar o visível; a ciência por trás da experiência; o mito legado à origem de tudo que é comestível do ponto da língua-cultura. (Narrador poético) Se eu puder falar com Deus, Gil cantava. Atravesso isso não como orações, mas sim como a desintegração da cultura enquanto laço dominante, sofro minorias, a mistura do racional e do irracional, da psique ao logos cartesiano. Pois faço da escrita uma rede; uma textura polimórfica de afetos.

A poeta calí boreaz, em seu primeiro livro de poemas, outono azul a sul (editora Urutau), estabelece deslizamentos entre posições não fixas de olhar o entorno. Se temos nossa memória como uma bagagem de mão, é quase como dizer que o lápis é seu gancho, sua força motriz para lembrar-escrever.

A poeta narra seus poemas sempre de um ponto flutuante do eu. Ela não está no norte em Portugal, sua latência poética talvez sim. Mas é como uma bagagem-câmera que calí traria para o sul, para a transfiguração dos quadros, para a mudança da paleta do outono de lá-saudade para o azul dos trópicos — para a poeta se colocar, não como pessoana, mas, sim, como Bergson; o filósofo já estudou o que faz o tempo com relação à personagenalidade, e nem aqui falo de máscaras muito matizadas pelo estudo do teatro.

calí não personifica o estar aqui na praia de Ipanema coletando rolleiflex emocionais de um pôr-do-sol no posto nove. Sua musicalidade é deslocante do ponto de vista da observação, como se o eu falasse — não de um observatório astronômico do tipo Palomar, em que Italo Calvino descreve em camadas a realidade das coisas em focos cada vez mais infinitesimais — mas, sim, de um falar-canção do próprio transcurso da poeta entre veia biográfica e mimetização do mundo circundante. Muito apegado a insights fotográficos que seriam quase corpos-de-filmar, momentos sensoriais cotidianos deslizando e deslocando seu corpo-câmera para relações espaciais entre lá-e-cá, o afeto na poeta não tem ponto nenhum de referência, ele é aglutinante de tudo que encontra e agarra-se para foco e espaço de afecção."




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